Alguns dias servem para superar nossos limites e aumentar nosso nível de conforto em determinada situação.
Na última 2a. feira saímos de São Paulo o Osvaldo e eu e, depois de umas 9 hs de estrada estávamos estacionando no começo da noite no Abrigo das Águas do Sérgio Tartari em Salinas.
No dia que chegamos só conhecemos algumas pessoas que estavam por aqui e logo fomos dormir para escalar cedo no dia seguinte. Nossa idéia era escalar a via CERJ (D3 5o. V (A0/VI+) E2) no Capacete e aproveitamos para pegar algumas dicas, principalmente do acesso e rapel, com outros escaladores que já tinham a escalado.
Na 3a. feira (21/07) acordamos cedo (mas sem madrugar) às 6 hs com o despertador e depois de um lento despertar tomamos nosso café da manhã, acabamos de arrumar as mochilas e por volta da 7h20 pegamos estrada rumo ao Capacete. A subida da estrada foi tranquila (pouco mais de 4,5 km) mas bem esburacada. Nessas horas estar de 4x4 faz diferença.
Deixamos o carro às 7h40 e começamos a subida da trilha. Eu nunca tinha escalado no Capacete mas tinha noção da direção da trilha por causa da minha escalada no Pico Maior ano passado já que, durante a descida fomos pela trilha no colo entre essas duas montanhas. Continuamos a subida e depois de passar a placa de acesso ao setor Rodolfo Chermont do Capacete usamos o guia do Tartari para nos orientar. Passamos então pelo portão de ferro, pela casa, fomos até o riacho e antes dele começamos a subir em direção à face Norte do Capacete (navegando por instinto já que em nenhum momento conseguíamos ver a montanha por causa de uma forte neblina).
Como haviam nos dito a trilha é bem fechada e em alguns momentos não da pra saber sequer se existe uma trilha mas continuamos a subida lembrando de algumas dicas do dia anterior e usando um pouco de instinto para chegar até a parede.
Fomos subindo por um vale de mato entre duas paredes e às 9 hs achamos que tínhamos achado a via. Nos equipamos e eu entrei então para ver se realmente era a CERJ. Escalei alguns poucos metros e logo percebi que estava na via Devaneios do Repouso (D3 5o. VI (A0/VIIb) E3) uma via que o próprio guia de escalada da região diz ser a mais exigentes do Capacete. Comecei escalando com cuidado e depois de alguns minutos de stress estava na primeira proteção da via. De lá fiquei feliz por enxergar a próxima então continuei a complicada e delicada subida até chegar na sua 3a. proteção fixa. Até onde eu estava a via ia positiva mas completamente sem agarras, só aderência. Em pouquíssimas situações eu encontrava alguma agarra para os dedos com 1/2 cm de tamanho e que só servia de ponto equilíbrio, se um pé escapasse não haveria como evitar uma boa queda - e como a via tem grau de exposição E3, quem escala sabe como é, eu escalei pelo menos uns 20 metros e só haviam 3 grampos "P" no caminho).
Pouco acima da 3a. proteção vendo que a continuação que o croqui indicava era ainda pior do que eu havia escalado (ainda protegido em móvel e não tinha certeza para onde seria a parada) resolvi desistir e procurar uma rota de fuga. O mais óbvio no momento era uma laca na minha esquerda onde eu poderia proteger em móvel antes de procurar a parada ou tentar montar um rapel e descer. Fiz uma travessia bem técnica em aderência com muito equilíbrio e logo depois de uma quase queda que me fez suar frio (eu cairia uns 20 metros até ser travado pela corda) cheguei na laca. Lá percebi que não tinha sido o único já que lá mesmo havia um cordelete abandonado laçando uma dessas lacas (usado para rapel). Fiquei alguns longos minutos pensando o que fazer e decidi que o melhor mesmo seria descer. Como estava com corda dupla o Osvaldo liberou uma delas e fez minha segurança enquanto eu rapelava com a outra corda até que eu chegasse no 3o. "P" da via onde montei o rapel que me levou até o chão.
A primeira parte do rapel foi muito estressante. O fato de fazer rapel em uma laca laçada com um cordelete não me assusta, mas quando você olha essa laca e percebe que ela esta solta e já mexeu no sentido que você pretende descer faz você realmente suar frio. Por isso fiz de lá um rapel só até a 3a. proteção - e com a segurança do osvaldo na outra corda caso a laca resolvesse cair de vez - e felizmente tudo correu bem. Às 11h20 já tinha descido, comido uma bolacha e me desequipado para descer a trilha.
Como ainda era cedo fomos então procurar a verdadeira base da via CERJ e marcá-la no GPS para que pudéssemos voltar no dia seguinte sem nenhum erro e perda de tempo. Fomos andando, contornando pedra, subindo pedra, olhando croqui, guardando croqui e logo vimos que estávamos no caminho certo. Subimos por outro vale entre rochas, alguns trepa pedras, uma pequena chaminé e às 12h20 estávamos realmente na base da via. Lá eu e o Osvaldo nos olhamos e mesmo o com horário mais avançado perguntamos um pro outro "vamos?". Como conhecemos o ritmo um do outro a resposta na hora foi "vamos!" então nos equipamos novamente e o Osvaldo começou guiando a primeira enfiada.
O começo da escalada foi perfeito e muito rápido. Mesmo usando algumas peças móveis em uma enfiada e com vários esticões em outras estávamos muito confiantes e escalando rápido. Cerca de 2 hs depois de começarmos a subida estávamos fazendo uma pausa para um lanche na 6a. parada da via mas ai na sequência começaram alguns imprevistos. Primeiro o Osvaldo escalou até uma 7a. parada altenativa sendo que ele não achou a parada real e parou em apenas um "P" após um primeiro lance em artificial (5 parafusos antigos) e que não era o artificial da CERJ. O Sérgio Tartari depois disse que provavelmente entramos em alguma tentativa da conquista original da via. Para piorar, ele mandou esse lance bem complicado (aderência) depois de um esticão com mais de 15 m da última proteção, levar uma queda não era uma opção que podia ser cogitada.
Subi de segundo até onde ele estava e começamos a estranhar a via. Um pouco abaixo de nós víamos um P que achávamos ser a verdadeira 7a. parada (mas faltavam outros para chegar até ela) e 5 parafusos do trecho em artificial. Até ai tudo bem, mas na continuação deviam haver 4 parafusos (ou chapeletas, ou qualquer outra coisa) e só haviam dois e para cima mais nenhuma proteção, mostrando que realmente tínhamos bobeado em algum lance e saído da via. O Osvaldo aproveitou que estava no pique daquele lance e então continuou a escalada até parar em uma parada dupla com duas chapeletas Bonier de uma via lateral à nossa. Subi em seguida até a parada e vimos então que também não havia mais proteções acima mas nossa única opção era continuar escalando. Subi então na sequência e protegendo em móvel onde dava (em uns 30 metros consegui colocar 2 friends) e como vi que estava chegando no topo e já era possível ir andando montei uma parada em móvel para que o Osvaldo se juntasse a mim e então continuassemos caminhando até o topo.
Com todo o atraso às 16h40 terminamos a via e chegamos no cume do Capacete. Fizemos uma pausa rápida para foto, guardar na mochila o equipamento que não usaríamos na descida e nossa maior preocupação no momento era: descer!
Com as últimas luzes do dia, que apresentaram um pôr-do-Sol espetacular sobre um mar de núvens (infelizmente sem fotos já que havia outra prioridade) usamos o GPS para indicar o lado que acreditávamos estar a via de descida (estava muito nublado e não era possível enxergar o Pico Maior) e começamos a procura. Ficamos rodando e rodando pelo cume até que em uma abertura de 10 segundos pudemos ver realmente onde estava o Pico Maior e encontrar alguns tótens que nos levaram até o topo da via que rapelaríamos. Já eram 18h05, o Sol tinha se posto há meia hora e estava completamente escuro.
Começamos então nossa descida e eu abri o primeiro rapel. Tirando alguns enroscos de corda no começo tudo parecia bem até que começou a ficar complicado de achar a parada. A via que estávamos descendo é apenas uma via para rapel, ou seja, só teria paradas duplas a cada 25 ou 30 metros (se quem a montou for bonzinho e pensar em quem escala usando só uma corda) ou, no pior dos casos, a cada 50 ou 60 m para quem faz o rapel com duas cordas. Em vias "normais" é mais fácil rapelar no escuro já que você vai seguindo as proteções. Em uma via que não tem proteções intermediárias para saber se a próxima esta bem abaixo, para a direita ou para a esquerda, e foi o que aconteceu. Depois de muitos minutos no primeiro rapel procurando a parada consegui a encontrar depois de 50 metros de rapel.
Na sequência o Osvaldo desceu até onde eu estava e, enquanto tirava a corda do freio deixou ele cair. O tempo estava muito frio e ventando o que afeta (e bastante) a sensibilidade dos dedos. Já estávamos tensos com o rapel no escuro e querendo terminar logo, agora perder um freio desanima mais ainda qualquer um. A primeira opção que ele deu foi rapelar usando nó UIAA, mas como são rapéis longos eu não queria que ele fizesse dessa maneira para não torcer a corda (depois é muito ruim de destorcer e nunca volta a fica como antes) então relembramos juntos como fazer um freio só usando mosquetões. Felizmente eu tinha alguns mosquetões ovais e eles ficaram perfeitos nisso.
O Osvaldo abriu o segundo rapel e depois de 25 metros achou uma parada dupla e parou. Desci até ele e começamos a achar que tudo continuaria bem e dentro de poucos minutos estaríamos no chão na trilha para o carro, mas não foi isso que aconteceu.
O Osvaldo começou o terceiro rapel e os minutos foram passando e passando e passando. O frio estava rigoroso e ainda ventava na parada que eu estava e eu tremia muito. Mas mal sabia eu que o Osvaldo estava em situação pior: Ele foi descendo procurando a próxima parada até que a corda acabou e não havia parada.
Depois de muitos minutos congelando a corda se afroxou um pouco e mal conseguindo entender o que ele falava entendi que era para eu descer e procurar as paradas da via e foi o que fiz. Comecei a descer devagar olhando para todos os lados - principalmente para o esquerdo já que tinha visto um P a uns 10 metros na diagonal da parada - e logo tinha descido uns 45 metros e nada de parada. Consegui falar com o Osvaldo e minha sugestão era irmos bem para a esquerda da parede já que eu tinha visto aquele P para a esquerda da parada e achava que encontraria algo para aquele lado. O problema é que o Osvaldo só tinha conseguido liberar um pouco a corda porque ele tinha entrado em um buraco na parede e esse buraco ainda estava bem para a direita e abaixo de uma parede negativa, ou seja, não era fácil ele voltar para a corda (mesmo ainda estando presa a ele) e "andar" pela parede para a esquerda.
A solução foi eu ficar parado onde estava enquanto o Osvaldo jumareava alguns metros pela corda até que conseguisse "andar" por ela. Fiquei parado aguardando e veio um belo susto. Eu estava mais para a esquerda da parada procurando pela próxima e o Osvaldo para a direita, foi ele colocar o peso na corda que eu levei uma queda pendulando que com certeza teve mais de 20 metros horizontais! O nível de adrenalina/stress que já era alto agora estava na estratosfera! Mas depois de estabilizar minha única opção era ficar parado esperando o Osvaldo subir um pouco (quando ele colocou peso na corda ele travou meu freio e não era possível eu subir ou descer, minha única opção era mesmo esperar).
Alguns minutos mais e o Osvaldo conseguiu subir pela corda até um ponto da parede mais positivo (essa descida foi toda muito vertical). Fomos então juntos andando pela parede para a esquerda e eu já pensava que, caso não encontrássemos a parada, a única saida seria ir para o buraco que o Osvaldo tinha achado e esperar até o dia seguinte quando clareasse para descer. Mas felizmente, quando estávamos bem para a esquerda achei a parada! Foi um momento de êxtase, a chance de termos que dormir na parede com frio e vento tinha caído (mas ainda não era nula e tínhamos que manter a atenção a cada movimento que fazíamos).
Como eu estava tendo mais sorte para encontrar as paradas eu fiz então esse rapel. Comecei a descer e depois de algum tempo achei uma parada. Medi quando ainda sobrava de corda e eu tinha descido só 25 metros, então resolvi continuar a descida. Como estava muito escuro e o alcance da minha lanterna é pequeno fui descendo, descendo até que finalmente cheguei ao chão firme depois de mais uns 50 metros de rapel.
O Osvaldo desceu então até onde eu estava, felizes nos cumprimentamos pela escalada e pela roubada que tinha sido descer de noite e respiramos aliviados por não ter que dormir no cume ou na parede, mas ainda não tinha acabado. Fomos puxar a corda e, como não podia deixar de ser, a lei universal de Murphy que diz: "se uma coisa pode dar errado ela vai dar errado" estava lá presente (ficou nos perseguindo boa parte do dia) e, ao puxar a corda, ela enroscou em uma árvore que fica em um platô a uns 15 metros acima de onde estávamos. Tentamos de toda maneira puxar colocando todo nosso peso na corda mas nada. O Osvaldo (que estava craque em jumarear) pediu o tibloc, fez um prussic com um cordelete e começou então a subida até a árvore para liberar a corda. Ao descer ele disse que a corda tinha feito um tipo de laço e se prendido a um galho, não importava o quanto puxássemos nunca iria soltar.
De volta ao chão, agora com as cordas puxadas e dentro das mochilas nos desequipamos e às 21h30 começamos a descida da trilha! Durante a descida tudo correu bem e descemos bem tranquilos e devagar para evitar qualquer imprevisto que pudesse acontecer. Às 22h40 chegamos no carro e viemos direto para o abrigo onde preparei um macarrão com molho de tomate com cebola, milho e atum! Não sei se era a fome, mas tanto eu quanto o Osvaldo achamos ótimo!
Agora são quase 1h30 e estou acabando de escrever o texto para postar depois. Cheguei inspirado e não quis esperar até outro dia já que alguns detalhes acabariam se perdendo.
E como eu comentei na primeira linha do texto, alguns dias servem para superar nossos limites e aumentar nosso nível de conforto em determinada situação. Hoje foi um típico dia que eu sei que está terminando comigo diferente do que começou (e o Osvaldo também). Desde o começo do dia com a procura da via, escalada de um pedaço de via errada, rapel muito arriscado (o mais arriscado que fiz até hoje e eu odeio rapel), escalada de uma via sem certeza do seu caminho quase no seu final e, para completar, a longa procura do ponto de rapel e descida à noite com direito a muito frio, não achar parada e corda enroscada para fechar, isso realmente faz você ver como as coisas acontecem e como é estressante em algumas situações lidar com elas, principalmente em uma situação que você sabe que, se errar você está morto.
Mas isso não é ruim, apesar de um pouco traumatizante (inclusive amanhã nem vamos escalar) serve para melhorar o seu raciocínio e ações em situações limite e no final aumenta o seu nível de conforto te deixando mais preparado para imprevistos.
Algumas fotos das escaladas aqui em Salinas estão no link Escaladas Salinas.
- enviado por Tacio Philip às 19:02:00 de 24/07/2009.
< Anterior: Show do Paul Di´Anno no Manifesto Rock Bar |
Listar publicações |
Próxima: Escalada no Pico Maior e Morro do Gato em Salinas (PE 3 Picos) >